Greta

   Quando eu era criança, vi certa vez minha mãe arrumando suas coisas, colocou tudo em duas mochilas e saiu de casa com o Carlinhos. Eu chamava Carlinhos de pai, na verdade chamava todos os namorados de mamãe de pai na época. Ela fora morar com ele em algum lugar longe demais para poder levar eu e minha irmã. 
  O dia da semana no qual ela aparecia para me ver tornou-se um dia sagrado. Era o dia em que o jarro de saudade esvaziava-se. Ficávamos juntos o dia inteiro e ela me prometia que logo logo me levaria para morar com ela. Mas o dia na semana fora transformando-se no dia no mês, dia a cada dois meses e por ai vai... No pequeno barraco de tábuas em que morávamos eu, minha irmã  e nossa vó, desenvolvi um ritual de sempre ficar olhando pelas gretas entre as tábuas, atento para o primeiro sinal da cabeleira cacheada, a marca registrada de mamãe, lembro-me até hoje do cheiro de madeira molhada nos dias de chuva, a castanheira la no quintal e os raios de sol que atravessavam a casa. Mas nem sinal dela.
   Reclamava com minha vó, que sempre dizia que ela devia estar trabalhando demais, me aninhava em seu colo e enxugava minhas lágrimas. Já minha irmã brigava comigo, dizendo que eu era bobo de esperar por minha mãe, porque se ela gostasse mesmo da gente estaria morando ali conosco.
   Eu confesso que demorei um tempo, mas comecei a concordar com minha irmã mais velha. Aos poucos abandonei a greta, e percebo hoje, momento no qual decidi compartilhar esses momentos de minha vida, que algo mudou no momento que abandonei as gretas daquele barraquinho.
  Ninguém virá me socorrer, por mais que me deposite minha atenção, minhas preces e minhas lágrimas. Preciso ser esperto e gastar tais posses preciosas de forma inteligente. Melhor não gostar muito de qualquer um, melhor, não gostar muito de ninguém, vai que... né. Não quero ter que voltar a olhar por essa greta.
   Passei muitos anos vivendo assim, sempre amando abaixo do que podia, nunca me entregando. Caso eu seja abandonado de novo, tenho um kit para emergências. Quem muito dá acaba sem nada. 
   Me tornei um avarento de amor, só que as pessoas gostam de mesa cheia, de fartura. Coisa que desaprendi a oferecer, então fui perdendo atrativos. Não cheguei a ser abandonado novamente, porque ninguém se interessou em pelo menos entrar para pelo menos ir embora.
   Tantos anos economizando, eu deveria ser uma mina de amor próprio, não é? Pois é, acontece que esqueci como acessar esse cofre. Me acostumei a ser emocionalmente econômico que nunca mais precisei.
   E é nesse momento que me aparece você. Eu te amei da melhor forma que ainda sabia amar, mas você era tão farto de amor, que acabei contraindo uma divida com você. Procurei desesperadamente pela chave mas não encontrei a tempo, perdi a chave e você. E nesse doloroso término ainda contrai uma divida. Um débito em amor que juro pagar nem que seja a última coisa que faça. Prometo aprender a amar e produzir amor novamente para poder lhe dar tudo. Mas para isso preciso que você me cobre. Estou esperando que bata em minha casa e diga que aceita tudo que estou tentando fazer para pagar tudo que me deu. 
   Estou fazendo o que nunca pensei que voltaria a fazer: olhar pela greta.

Comentários

  1. Essa poesia me tocou tanto, querido. Essa visceralidade na entrega, na procura, por vezes nos machuca. Mas não há mal em ser intenso.

    De todos os vazios, o que merece um primor atencioso é o do amor próprio. Tanta sobriedade e sombras te habitam. O que há de fazer?

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas